Memórias de um Jornal Popular Independente - O Berro
GOMES, Nilo Sérgio S.
Mestre em Memória Social, UNIRIO, Rio de Janeiro.
RESUMO
Esta comunicação tem por objetivo contribuir com a reconstituição da memória da imprensa alternativa nos anos da ditadura militar brasileira. Ela trata de uma iniciativa de militantes políticos e de movimentos sociais que, no meio operário e popular, buscaram através de um jornal tablóide chamado Berro difundir notícias, problemas e conquistas que aconteciam no meio do povo. E que não eram noticiadas pela grande imprensa, face mesmo a censura explícita e a não explícita que tentava – e tantas vezes conseguia – calar as vozes e os sussurros cada vez mais intensos na sociedade civil e que, por isso mesmo, se difundiam com admirável velocidade. No final dos anos 70, a opressão militar já não conseguia mais deter, tão eficientemente, essas tantas vozes e sussurros que se espalhavam como ventania. O Berro teve sua existência a esta época, em que a disputa política passou, por uma série de razões, a inspirar cenários de mudança e transformação. Trabalhar, portanto, através da difusão da informação, para a materialização destes cenários seria cumprir um objetivo estratégico: mudar a correlação de forças e possibilitar uma conjuntura de liberdade de expressão, manifestação e de organização popular. O Berro circulou de dezembro de 1978 a dezembro de 1979, e eu fui o seu editor.
1. Introdução
Foucault (1970) nos diz que todo poder implica (resulta) em uma resistência e que toda sociedade seleciona seu discurso, descartando, quando não banindo, o que não interessa à fala do poder, ao seu discurso e imaginário. No discurso jornalístico, ou na linguagem jornalística (Lage, 2004), esta seleção passa por processos editoriais tão intensos e rigorosos que muitas das vezes ou quase sempre silenciam vozes, que são expressões de diversidades étnicas, culturais, políticas, sociais, de opinião, de gênero (Gomes, 2006).
Em outras vezes, são edições que buscam harmonizar, “editar”, de certa forma, os discursos dos fatos, múltiplos fatos que, por si próprios, se dizem de muitas e diversas linguagens e situações, não necessariamente harmônicas e harmonizadas. Tantas vezes há em que, pelo contrário, são situações conflitantes entre si, mas que o discurso jornalístico, quase sempre e sob aspectos sutis, busca “editar”, “harmonizar” de tal modo consoante com a voz e os interesses do dono da voz, da mídia (Gomes, 2005). Um discurso determinado, historicamente, enfim, sutilmente subjugado à voz do dono, isto é, de acordo aos seus interesses em jogo. Interesses capitalistas, por excelência, que visam lucros comerciais, industriais e disputam a produção dos sentidos e o poder na sociedade. Discurso cujo poder é detentor de enorme capital político, que busca legitimar a si próprio, enquanto linguagem jornalística e discurso do poder. O poder do discurso jornalístico: deu no jornal, no rádio ou na tevê, é fato. E fim de papo.
O discurso jornalístico é foco recente de estudos e análises de discurso, embora a sua prática remonte, tanto no Brasil quanto em boa parte do mundo, a mais de séculos. O discurso de jornal começou reproduzindo as linguagens dominantes e predominantes de sua época, em suas respectivas sociedades e tempos históricos. Modos de dizer – os ditos e os já ditos – que, no Brasil, como em boa parte dos outros países, ao nascer e prosperar se desenvolveram em períodos romântico-literários, quando os jornais eram escritos com textos rebuscados, de profunda e evidente inspiração poética e prosa literária, da digressão; sem a formatação que mais tarde seria conhecida como linguagem jornalística, identificável em qualquer idioma, “transfronteira” (Lages, 2004). Uma linguagem para informar, cotidianamente, via uma estrutura de texto comum a diferentes línguas, e que alcança grandes audiências, quando não integral credibilidade. Saiu no JB, deu n´O Globo, O Dia publicou, é verdade. Pra desmentir qualquer erro de informação será bem mais difícil do que ter sido notícia. Mesmo que errada, incompleta ou difusa.
Mariani (2001) diz que analisar o discurso jornalístico é importante e necessário porque ele, “enquanto prática social, funciona em várias dimensões temporais, simultaneamente” (p. 33). Ele “capta, transforma e divulga” o presente, como “organiza um futuro”. Diz Mariani:
O discurso jornalístico tanto se comporta como uma prática social produtora de sentidos como também, direta ou indiretamente, veicula as várias vozes constitutivas daquele imaginário. Em suma, o discurso jornalístico (assim como qualquer outra prática discursiva) integra uma sociedade, sua história. Mas ele também é história, ou melhor, ele está entranhado de historicidade. (p. 33)
Mas, além disso, o discurso jornalístico é uma linguagem portadora, em si mesma, da polêmica e sempre interessante discussão sobre a chamada objetividade ou, ainda, não necessariamente a mesma coisa, a dita imparcialidade jornalística, que, de alguma forma se traduz em tal “objetividade” e com ela se confunde. De per si é uma linguagem garantidora da credibilidade da informação. Isto é, uma maneira de dizer que nem sempre diz tudo e que, tantas vezes, diz pelo não dito, pelo que está oculto, ou pela ausência de dizer, mas que transpira e se evidencia produzindo sempre sentidos de “verdades”. Deu no jornal, aconteceu. Já é.
Linguagem “transfronteira”, como a observa Lage (2004), o discurso jornalístico é uma maneira própria de dizer da notícia, da informação jornalística, e como tal praticada em muitos idiomas. Sob esse aspecto, portanto, já nasce formatada (Gomes, 2005). Muda nomes, datas e circunstâncias dos fatos para difundir a notícia, a informação, naquela estrutura de fala e de texto, por sua vez, a que já está habituada sua platéia de leitores, ouvintes, telespectadores. Ou seja, o formato do texto pré-existe aos fatos. Reafirma-se, também aqui, o dito por Benjamin (1994) sobre a morte do narrador.
É através desta linguagem que fatos do presente, conflitos e contradições das sociedades contemporâneas ficarão arquivados em coleções e bibliotecas, como memória potencial, possível de ser retirada de sua insignificância (Davallon, 1999), do esquecimento.
E o que fica como memória dos dias de hoje? De quem se fala nessas memórias? Quais vozes ficarão registradas, quais conflitos, quais silêncios e realidades, contradições...? É de se supor, portanto, que muitas vozes, muitas realidades, muitos clamores poderão e certamente ficam fora da memória do jornal, até porque não se pode dizer sobre tudo. Há limites físicos de espaço e nem tudo tem igual importância. Contudo, no caso do discurso jornalístico há relações de disputas e escolhas que estão presentes no ato mesmo de sua escrita, de tal modo que o que fica para a memória em seus arquivos reproduz e espelha também as relações de força, de poder e de resistência, de disputas ideológicas existentes nas sociedades de seus respectivos tempos históricos.
Até mesmo porque o jornalista que escreve esse discurso – o da linguagem jornalística –é “acima de tudo um contemporâneo”, no dizer de Bakhtin (1970/71, apud Tagé, 2003). Vive na fronteira do acontecer, à espreita do próximo minuto, do que pode transformar nossas vidas (Gomes, 2005). E carrega consigo memórias do dizer, memórias de família, pessoais, toda uma rede de memórias sociais presentes no cotidiano, carregadas de ideologias, de múltiplos sentidos, ambigüidades, contradições.
Por tudo isso, por acontecer no meio social, reproduzindo e interferindo no próprio meio sobre o qual noticia, o discurso jornalístico contém e carrega muitas vozes e conflitos. É dialógico, por natureza, polifônico, pois trata do outro, da diferença e das multidões (religiosas, étnicas, políticas, sociais, esportivas). Mas trata e retrata a diversidade a partir de um ponto de vista, uma linha editorial que desde a pauta vai configurando o texto, do seu nascedouro ao olhar do leitor.
E o que não foi publicado, portanto, não será lembrado, não será memória possível de se reconstituir a partir das pesquisas nas páginas de jornais passados. O que não deu no jornal ficará, tão somente, na memória dos grupos e pessoas, instituições ou etnias, movimentos ou países que participaram do evento, do ato não registrado em notícia de jornal. Isto é, ficará na memória social (Halbwachs, 1990), podendo ou não desaparecer com o tempo, deixar de ser vestígio de memória, caso não fique inscrito em algum meio físico, que se possa consultar mais tarde, se um dia este fato sair de seu esquecimento profundo.
Foi com a intenção também de produzir memória, mesmo que muito mais ocasionalmente do que intencionalmente, que um grupo de militantes políticos, em 1978, decidiu organizar e lançar um jornal que publicasse notícias sobre os movimentos, as lutas e os problemas do dia-a-dia da vida da população mais simples. Isto é, um leque de categorias sociais cujas vidas e dificuldades não eram assunto das pautas dos jornais.
Seja pela repressão política típica de um governo ditatorial, como o que existiu, no Brasil, de 1964 até 1985, quando expirou, formalmente, mas não completamente a influência, o poder e o dirigismo militar na condução do Estado e da sociedade brasileira; seja também por aquele discurso jornalístico ainda tratar as questões populares de formas de linguagem predominantemente sensacionalistas, ou, dito de outra forma, mais irônica e carregada de sentidos e polêmicas: “pobre só é notícia quando protagoniza tragédias ou situações extremamente absurdas e/ou caricatas”. Daí o nome Berro. O jornal dos que não tinham voz e nem vez, e que gritavam para ser ouvidos.
Um jornal “popular e independente”, que em 13 edições publicou notícias sobre acontecimentos ocorridos no meio do povo ou que, acontecendo fora do seu meio, a ele impactava diretamente, como uma política salarial, uma decisão de governo etc. Um tablóide pensado também para ajudar na organização do povo, nos sindicatos, associações de moradores, no meio rural, sendo ele próprio uma forma de organização e influência, com suas reuniões amplas e abertas a que acorriam as novas lideranças dos movimentos sociais que passavam a se constituir, forjando essas lideranças na própria prática cotidiana das suas lutas, que eram tema e assunto de pauta do jornal.
Com isso, a linguagem do Berro, desde o início, buscou ser a mais próxima da maneira de falar e de entender das pessoas que eram o seu público alvo, modificando, contudo, o conteúdo do que abordava. E tinha que ser assim porque, do contrário, um texto de mais difícil compreensão era, inevitavelmente, criticado nas reuniões mensais de pauta, alertando redatores e os “repórteres” informais, que eram os próprios militantes, para o problema. Por isso, para facilitar o entrosamento desta maneira de falar e de produzir discursos, as próprias lideranças desses movimentos sociais eram convidadas a escrever no jornal, trazendo, na contramão do discurso da mídia dominante daquela época, expressões e formas de dizer, de narrar os fatos e de contar os acontecimentos que não eram comuns e nem se encontravam no dia-a-dia do sisudo e repetitivo discurso jornalístico da mídia “oficial”.
2. Contexto histórico
No final dos anos 70, quando surge o Berro, a ditadura militar instaurada pelo Golpe de 64 já não contava mais com uma censura política à imprensa tão ativa, abertamente, como nos anos mais sangrentos do seu poder. Mas por meios terroristas e clandestinos agia com impiedosa perseguição, incendiando sedes e bancas de jornais, perseguindo publicações rebeldes, desde suas redações às gráficas em que eram impressas, e usando instrumentos do financiamento público, como anúncios, balancetes e editais de empresas e órgãos públicos, estatais e governamentais, para sufocar vozes ou para que fossem amplificadas as que eram submissas ao seu poder ou lhe davam apoio.
Muitas publicações lutavam para sobreviver, como foi o caso emblemático do jornal Opinião, no início da segunda metade dos anos 70, e depois dele o jornal Movimento. Editoras e livrarias também sofriam perseguições. Contudo, as publicações se multiplicavam, muitas com menor exposição do que os jornais citados, o que lhes deixava algumas vezes fora da mira e do foco da repressão.
Nos últimos anos da década de 1970, quando pipocavam paralisações nas fábricas da região do ABC paulista, no Rio aconteciam greves na Fiat, nos transportes públicos, e a campanha pela anistia ganhava fôlego e as ruas de várias capitais brasileiras, com apoios e repercussões externas; nesta época, a ditadura ainda detinha poder militar, mas já não tinha tanto respaldo político, em especial, o da classe média, como também de parte da burguesia empreendedora. Estava mais difícil do que em anos anteriores manter o regime de “paz de cemitério”; ou mesmo sustentar, através de efetivos paramilitares, a repressão aberta e radical a toda e qualquer manifestação e/ou organização de atos pelas liberdades políticas e civis e dos mais elementares direitos de expressão, manifestação e de organização.
É neste contexto que surge o Berro. Ativistas políticos, militantes dos movimentos sociais, no estado do Rio de Janeiro, de diferentes origens e profissões, se reuniram para lançar um novo jornal, voltado para a informação, formação e intercâmbio entre leitores interessados na disputa política, em discutir os problemas da atualidade nos bairros ou nos sindicatos, a partir de pontos de vista que privilegiassem os interesses das amplas camadas populares, diferentemente do que fazia a grande imprensa da época, que praticamente desconhecia, ou se fazia desconhecer, os problemas e angústias de amplas camadas da população.
Aqui cabe um parêntesis: (Esta lacuna da chamada grande imprensa, levou a que os movimentos sociais, em especial, associações de moradores, iniciassem uma prática de publicações em tal monta que levou à criação, no início dos 80, pelo Globo, do suplemento dos jornais de bairro. Com marketing promocional e inúmeras vantagens (anúncios mais baratos, pagamento em parcelas etc.), e até pelo seu próprio porte industrial, o grandalhão da imprensa atraiu o comércio dos bairros para anunciar em suas páginas, oferecendo amplas vantagens, até a confecção do anúncio e pagamento a prazo, retirando dos jornais de bairros comunitários a própria fonte de seu financiamento de custeio, que era em boa parte o comércio local, do bairro. Paulatinamente, esses jornais comunitários deixaram de existir. Afinal, qual comerciante não iria preferir anunciar no Globo, a no pequenino e limitado jornal do bairro? Logo depois de consumida, consumada e consolidada a sua supremacia, o Globo mudaria preço dos anúncios e também a própria pauta de seus jornais de bairros).
Mas estávamos, na época da criação do Berro, às vésperas da anistia, que veio em 1979, com imperfeições, mas também como conquista. E estávamos em meio a crescentes e efervescentes atividades políticas, sindicais, de ação e organização de movimentos de bairros e favelas contra a carestia e pelo direito à livre associação, à moradia, e que se expressaram no campo institucional nas eleições de 1978, em que a esquerda conseguiu eleger candidatos à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, através do então MDB. Época das greves no ABCD paulista e da Fiat, do Rio; das lutas estudantis pela reorganização da UNE, dos centros acadêmicos, por melhores condições de ensino, novos currículos, por mais verbas para as universidades públicas; e da greve, em janeiro de 1979, quase totalmente espontânea, dos motoristas e trocadores de ônibus, que paralisou o transporte público pela primeira vez na cidade, depois do Golpe de 64.
Esta greve dos rodoviários foi matéria de capa do Berro, no seu segundo número, edição de janeiro. Com duas páginas internas de reportagem, em uma cobertura oposta à feita pelos jornais da grande imprensa da época, praticamente incriminando motoristas e trocadores como “vândalos”, o Berro trouxe a voz dos motoristas e trocadores, com suas troças e ironias, cantigas contra os patrões, como os versos que o jornal publicou na primeira página, dentro da foto, em uma solução que exigiu tamanho esforço da equipe da gráfica onde era rodado o jornal (Anexo 3).
Outras greves viriam e o jornal iria cobri-las com o mesmo espírito de criar espaços no discurso jornalístico para o diferente da diferença que a fala do poder e de sua edição propiciam e permitem. Greves como a dos metalúrgicos de Niterói ou a dos professores da rede estadual, movimentos que iriam dar sustentação ao parto de um novo país que a sociedade transpirava, almejava e perseguia.
É neste contexto que surgiu o BERRO, cujo título, em caixa alta, era seguido na linha de baixo da epígrafe que servia como uma identidade a diferenciá-lo da grande mídia: Jornal popular e independente. Ou seja, um jornal interessado no que acontecia no meio popular, e ao mesmo tempo um jornal independente, isto é, fora dos parâmetros que esquadrinhavam a imprensa de então, deixando-a, quase sempre, distante, distanciada dos olhares da sociedade, que estão fora do estreito círculo do público alvo desta grande imprensa, a chamada classe média, os segmentos que a ela almejam, além dos parceiros do poder e dos formadores de opinião, os críticos e/ou os jornalistas.
O objetivo do Berro era, portanto, totalmente político e esses militantes, em grande maioria, vinculados ao Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP[1]), organização política de esquerda, clandestina, que foi “desbaratada” pela polícia política da ditadura no início de 1977, como noticiaram os jornais da época. Mas que se reergueu e manteve influência política por longos anos, dissolvendo-se em outras organizações, desde o próprio Partido dos Trabalhadores aos grupos que ainda se mantêm organizados, com estrutura própria, e que atuam como tendências em partidos como PT, PSOL, PSB, PDT, e até mesmo o PMDB, que abriga o antigo MR-8.
Durante 11 edições mensais, mais duas extras, entre dezembro de 1978 e dezembro de 1979, com relativo sucesso junto ao seu público alvo – trabalhadores de fábricas e de
empresas, servidores públicos, moradores de comunidades pobres e de bairros com movimentos organizados (associações, grupos etc.), mais a militância organizada do
movimento social – o Berro circulou cumprindo seu objetivo fim. Informar e, desta forma, ajudar na organização das lutas populares de resistência à ditadura militar, e ser, desta forma, ao mesmo tempo, uma expressão e um instrumento da resistência no campo do jornalismo, da política e do discurso, impregnado que era, este, pelas censuras, autocensuras e opressões que transcorriam e transpiravam desde a linha editorial à pauta e à própria escrita de seus repórteres, redatores e editores.
A ditadura militar brasileira já dava sinais de proximidade do seu esgotamento, fim do ciclo de sua forma e tempo de poder. Surda aos clamores que vinham das ruas, dos sindicatos, universidades, fábricas, escritórios, serviços públicos – cega diante do abismo cada vez maior a separá-la da sociedade brasileira, a ditadura já não tinha mais a mesma eficiência, eficácia, para impedir e calar as vozes vindas de fora de seu círculo de poder. Até mesmo porque isto era cada vez mais impossível, tantas eram as vozes que se multiplicavam.
3. Conteúdos e memórias
O jornal Berro surgiu, em fins de 1979, da fusão de dois pequeninos tablóides que existiam. Um deles era o Berro da Baixada, surgido no início do ano anterior, com a circulação basicamente restrita ao município de Nova Iguaçu, que, àquela época, compreendia uma extensão territorial maior do que a atual. Publicou 16 edições. O primeiro número é de março de 1978, mas há, antes, um número zero não datado. O outro era o jornal Arranco, que teve apenas um número experimental, em setembro de 1979, cujo raio de circulação abrangia a Zona Oeste do Rio, algumas das mais ativas favelas da cidade, onde já havia movimentos associativos, e as fábricas mais importantes, como a Fiat, os estaleiros, inclusive do município de Niterói, mais as metalúrgicas de ambos os lados da Baía de Guanabara e bairros do subúrbio e até mesmo de algumas universidades.
A fusão criou um jornal mais forte e consistente, com maior poder de financiamento, já que os custos de produção, que eram basicamente de impressão e fotografia, eram pagos com a arrecadação feita na venda do jornal e nas doações mensais da militância e das recolhidas junto às bases. O jornal se ampliou para o estado, em especial, o Sul Fluminense, e sua circulação era garantida pela ação da militância dos movimentos sociais que surgiam e se expandiam entre os operários, nos bairros, favelas, entre os estudantes. A organização política à qual pertencia a ampla maioria dos participantes do Berro, o já citado MEP, estava com a sua direção presa nos quartéis militares, de tal modo que a ela nenhuma responsabilidade política, organizativa ou financeira deve ser atribuída.
O jornal foi feito e sustentado por militantes dos movimentos sociais, muitos deles do MEP, pois que estavam enfronhados nas lutas e movimentos sociais e que assumiram pra si a tarefa de dar direção à ação política da extensa militância da organização, construindo um jornal que repercutisse nas lutas e movimentos sociais e que servisse como elo orgânico tanto para a organização, como também para os movimentos sociais, a sociedade civil, as vozes da sociedade que passavam a ressurgir. Ou seja, o jornal foi bancado, em toda a sua existência de 11 números, duas edições extras e, exatos 13 meses, pelos ativistas dos movimentos sociais, que escreviam, apuravam e distribuíam o próprio jornal, e que também recolhiam finanças dentro das fábricas, como nos bairros e junto à militância das organizações populares. Entre eles, muitos estão hoje em postos e funções importantes na sociedade, como Benedita da Silva, César Benjamin, Chico Menezes, entre outros.
Com tais características, o jornal nasce impresso em uma pequena gráfica de Nova Iguaçu, aonde se imprimia em chumbo quente, em processo quase artesanal. A composição dos tipos ainda era manual nos paquês, pequenos retângulos metálicos em que ficavam amarrados os tipos de chumbo [letras e sinais gráficos], extraídos das gavetas do armário da tipografia para a composição, de acordo com as famílias, os tamanhos e as formas [negrito, itálico ou normal]) da composição do texto designados pelo diagramador. Com o correr do tempo o jornal iria superar as velhas máquinas passando, a partir do quarto número, a ser impresso em modernas off set.
O Berro eram oito páginas distribuídas nas coberturas sobre os movimentos de bairros, fábricas, políticas, tais como o lançamento da proposta de criação do Partido dos Trabalhadores, debatida no número 3, março de 1979, tanto através do editorial em defesa da criação de um Partido desta natureza e classe, quanto pela publicação das opiniões de dois sindicalistas da época: João Carlos, o Negão, presidente do Sindiquímica, contrário a um PT, e Osvaldo Pimentel, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, favorável à idéia, pero no mucho. E não foram poucas vezes em que o corajoso dono da gráfica, Everaldo Maciel Monteiro, teve de se ver com sujeitos estranhos (policiais), que chegavam, geralmente à noite, ou, bem cedinho, à porta do estabelecimento, próximo à Estrada do Mendanha, em Nova Iguaçu, para apreender o jornal. Uma única vez, os policiais conseguiram levar quase toda edição, pegando parte no carro que a transportava, um Fusca, e a outra parte na própria gráfica.
Gatos escaldados, nas próximas vezes dissimulamos as saídas da gráfica, alterando rotinas e os dias de rodar o jornal. Certa vez, sabendo que a polícia estava aguardando apenas o carro sair da gráfica, conseguimos burlar a vigilância, esconder os jornais em outro carro e parte em um botequim, carregando, no fusca, apenas dois ou três amarrados de centos da tiragem de 3 mil exemplares que o jornal ostentava, com orgulho, e os entregamos à polícia, fazendo cara de quem tinha perdido tudo. Valeu-nos boas gargalhadas ver, mais tarde, os mesmos tiras nas portas de sindicatos e associações, sem entender que jornal era aquele que estava sendo distribuído. Afinal, desta vez, nós os tínhamos apanhado.
As reuniões de pauta do jornal, inicialmente, em uma casa de três cômodos, com um amplo quintal embaixo de uma frondosa mangueira, com vistas para os morros ainda arborizados do Engenho de Dentro, eram discussões de conjuntura política, enriquecidas pelos informes do que acontecia nos bairros, favelas, fábricas, sindicatos, universidades. Discutíamos também, já que participávamos, em maioria, de uma organização, os rumos das posições políticas mais gerais, como a proposta de criação do PT ou de uma greve geral, pois mesmo com a direção na cadeia nos sentíamos, como já dito, na responsabilidade de prosseguir a luta, dando direção política e propondo caminhos às movimentações políticas e sociais, que se multiplicavam.
As reuniões de pauta do Berro propiciavam tanta sinergia que não era difícil perceber o poder de fogo do jornal, uma modesta “mídia” operária e popular, para disputar, discutir, informar, influir e influenciar os rumos dos acontecimentos. Polarizar com poderosos adversários, os patrões, com nosso pequenino poder de fogo, o de um jornal, que no dizer da canção de Milton Nascimento tanto pode ser um revólver quanto um sorriso.[2]
Com essa proximidade ao movimento social o Berro publicou, em janeiro de 1979, no segundo número do jornal, apesar de todas as limitações técnicas, uma foto ocupando praticamente toda a sua primeira página: a dos rodoviários interceptando ônibus que trafegavam em frente à antiga sede do sindicato da categoria, na Rua Camerino, no Centro, fazendo o popular piquete, há tanto tempo excluído do dia-a-dia e da história das lutas populares do Rio. Esta greve, na época, marcou a cidade e o jornal não só estampou a foto na primeira, como ainda, burlando as limitações da tecnologia disponível, inscreveu na parte mais escura da foto a letra da paródia que os grevistas cantarolavam, nas ruas e assembléias:
– Pra que nossa classe quer dinheiro
Nós já ganhamos demais
Três mil e setecentos cruzeiros
E veja o que a gente faz
Não como, não durmo
Não paramos pra nada
Rompendo as noites pelas madrugadas
Levando o ouro para o patrão
Andar de carro e comprar frescão
Hô, Hô, Hô
O Berro, janeiro de 1979. (coleção do autor)
O jornal aplicava uma linguagem direta, com uma pauta fiel aos interesses que se propunha representar e defender. Já no primeiro número dizia em suas manchetes e chamadas:
Pela Faferj livre
Mutirão Chapéu Mangueira dá o recado
Juízes militares condenam quem defende movimento popular
Em Volta Redonda metalúrgicos denunciam pelego
Baixada: povo reivindica e prefeito se esconde.
Chega de arrocho.
O Berro, janeiro de 1979. (coleção do autor)
Era uma linguagem direta, mesclando manchetes jornalísticas e palavras de ordem (“Pela Faferj livre”). Na época, militantes de uma outra organização política, a Polop[3] (Política Operária, ou, simplesmente P.O.), editavam um jornal que se propunha quinzenal e “concorria” no mesmo “público alvo” do Berro, tendo durado até o início de 1980. Chamava-se Hora Extra, cuja linguagem era mais “carregada” no texto, que eram mais densos, e que tinha como “Diretor Responsável” o já professor Moacyr Cirne, da UFF, pesquisador da história em quadrinho e provavelmente o único, naquela P.O., que detinha diploma de jornalismo para poder assinar como tal. Algumas das manchetes e chamadas do jornal anunciavam:
Comissões de fábricas e delegações sindicais
Xº Congresso Metalúrgico
Parque Proletário quer eleição para associação
Continua a luta pela água na Vila Cruzeiro
Fiat: salários baixos
Jornal Hora Extra, nov./78 e jun./79 (coleção do autor)
Outro exemplo seria o próprio Berro da Baixada, jornal que mesclava conteúdos culturais com a crônica do dia-a-dia, mas onde, vez por outra, aconteciam títulos e chamados do tipo:
Esquadrão continua intranquilizando a Baixada
Berro da Baixada, nº 0, s/d (coleção do autor)
4. Considerações finais
O Berro usava uma linguagem mais direta e mais jornalística. Era importante ser e parecer um jornal. No curto espaço de sua existência, reafirmou com sua história a importância dos jornais nas lutas populares, na possibilidade de se construir um espaço de resistência para as camadas do povo excluídas do poder, através de um meio de informação, uma mídia, mas também de aglutinação. O jornal informa, e também organiza.
O jornal manteve sua pauta baseada na conjuntura política dos movimentos sociais, das fábricas e dos bairros, bem como na das instituições da organização civil da sociedade, que começavam a se organizar, se reproduzir, ganhar solidez e musculatura, constituindo-se enquanto elos orgânicos de uma nova sociedade a nascer/renascer, nascer de novo, agora em outro patamar de consciência e consistência. Eram movimentos e entidades como as oposições sindicais, os sindicatos, associações, centros acadêmicos ou o Comitê Brasileiro pela Anistia, constituído nesta época, e que de certa forma viria a mudar com sua mera existência o discurso da mídia oficial, da grande imprensa, que acabou levada e/ou obrigada a abordar um assunto ainda considerado por muitos, em especial, pelo discurso da ordem, como “tema tabu”: a anistia. A criação do Comitê retirou as máscaras e mostrou os limites que se queria impor à liberdade.
Esse envolvimento com as lutas sociais levou o jornal, em 1979, a duas edições extras. Em março, tratou das greves no ABC, com a invasão e ocupação pelo Exército dos sindicatos e das fábricas e ruas do ABCD paulista. As manchetes: “O sindicato é nosso” – “Tirem as mãos dos sindicatos”. A de abril, com a manchete “Metalúrgicos de Niterói estão em greve”, foi escrita, editada e impressa, com fotos, na madrugada do primeiro dia da greve. Um feito inédito para um jornal que levava uma semana ou mais na produção final de texto, edição e impressão. Mas era, também, afinal, a primeira greve dos metalúrgicos, em Niterói, após o golpe militar. A voz operária subia o tom.
Em junho, o jornal publicou a cobertura do Congresso dos Trabalhadores Rurais do Rio de Janeiro, e a vitória da oposição metalúrgica de Volta Redonda, na campanha salarial da Companhia Siderúrgica Nacional. Na edição de julho, abriu as páginas centrais para a opinião dos moradores da Maré sobre o Projeto Rio, que previa nova urbanização da área, com a remoção das favelas. Em agosto, o destaque foi a nova greve da Fiat e a luta pela anistia. O jornal entrevistou um preso político, Hélio da Silva, ferroviário, que estava na Ilha Grande, e que era acusado pelo governo de ser terrorista.
Em setembro, o jornal é o primeiro praticamente a divulgar a morte de um peão, um trabalhador de obra, em Volta Redonda, contratado de uma empreiteira que prestava serviço à CSN (uma “gata”). O trabalhador morreu espancado pelos seguranças do alojamento dos operários da construção civil, que prestavam serviços à CSN, e seu corpo sumiu. O crime levantou a cidade em protesto, com apoio da diocese e das igrejas católicas locais, com os demais trabalhadores da construção civil fazendo a sua primeira greve, em Volta Redonda (então, área de Segurança Nacional), após tantos anos de opressão.
Em outubro, o jornal retoma a discussão política de um partido de trabalhadores e divulga as diversas iniciativas e atos políticos de lançamento e criação do PT. Em sua última edição, em dezembro de 1979, o jornal anuncia aos leitores que deixará de circular em janeiro, mas que voltará “com as forças renovadas para continuar a desenvolver nosso jornal e construir uma imprensa que realmente esteja ao lado do povo”.
A promessa não se cumpriria. O jornal terminou “enquadrado” nas “novas diretrizes políticas” do MEP. Em vez de prosseguir com uma experiência desenvolvida desde baixo, das fábricas, dos bairros, morros, dos movimentos, a direção política da organização decide criar um novo jornal, o Companheiro, de caráter nacional, para o qual seria arrastada, a contragosto, boa parte da militância do Rio de Janeiro que ajudou a construir o Berro e que logo depois se desligaria do MEP.
E assim o jornal acabou. Virou esta memória que narrei aqui.
4. Referências bibliográficas
Bakhtin, Mikhail. Apontamentos: 1970-1971. In: Tagé, Terezinha. Cultura e memória social no discurso jornalístico. Disponível em nov/2003 in: www.entretextos.jor.br/forum/texto002.html.
Benjamin, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Berro. Jornal popular e independente. Coleção do autor. Rio de Janeiro: Editora Equipe, dez./1978 a dez. 1979.
Berro da Baixada. Coleção do autor. Nova Iguaçu: Editora Equipe, 1978.
Davallon, J. A imagem: uma arte de memória? In: Achard, P., Davallon, J., Durand, J.L., Pêcheux, M. e Orlandi, E. Papel da memória. Tradução e introdução: José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999.
Foucault, M. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
Gomes, Nilo S. O texto jornalístico: tecnologia de discurso ou ocultação de sentidos? In: Morpheus. Revista Eletrônica em Ciências Humanas da Unirio, Ano 03, número 07, 2005. Disponível em www.unirio.br/morpheusonline.
_____________ Em busca da notícia: Memórias do Jornal do Brasil, 1901. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Centro de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio, 2006.
Halbwachs, M. A memória coletiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda, 1990.
Hora Extra. Coleção do autor. Rio de Janeiro: Edição Hora Extra Ltda., 1979.
Lage, Nilson. Linguagem jornalística. São Paulo: Editora Ática, 2004.
Mariani, Bethânia. Os primórdios da imprensa no Brasil (Ou: de como o discurso jornalístico constrói memória). In: Orlandi, E.P. (org.). Discurso fundador. A formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas, SP: Pontes Editores, 2001.
Tagé, Terezinha. Cultura e memória social no discurso jornalístico. Disponível em nov./2003 in: www.entretextos.jor.br/forum/texto002.html.
[1] Ver Brasil Nunca Mais, p. 102. Petrópolis, RJ: Arquidiocese de S. Paulo, Editora Vozes, 1985.
[2] Durango Kid, composição de Fernando Brant, letra, e Milton Nascimento, música: “este jornal é meu revólver, este jornal é meu sorriso”
[3] Ver Brasil Nunca mais, p. 102. Petrópolis, RJ: Arquidiocese de S. Paulo, Editora Vozes, 1985.
Mestre em Memória Social, UNIRIO, Rio de Janeiro.
RESUMO
Esta comunicação tem por objetivo contribuir com a reconstituição da memória da imprensa alternativa nos anos da ditadura militar brasileira. Ela trata de uma iniciativa de militantes políticos e de movimentos sociais que, no meio operário e popular, buscaram através de um jornal tablóide chamado Berro difundir notícias, problemas e conquistas que aconteciam no meio do povo. E que não eram noticiadas pela grande imprensa, face mesmo a censura explícita e a não explícita que tentava – e tantas vezes conseguia – calar as vozes e os sussurros cada vez mais intensos na sociedade civil e que, por isso mesmo, se difundiam com admirável velocidade. No final dos anos 70, a opressão militar já não conseguia mais deter, tão eficientemente, essas tantas vozes e sussurros que se espalhavam como ventania. O Berro teve sua existência a esta época, em que a disputa política passou, por uma série de razões, a inspirar cenários de mudança e transformação. Trabalhar, portanto, através da difusão da informação, para a materialização destes cenários seria cumprir um objetivo estratégico: mudar a correlação de forças e possibilitar uma conjuntura de liberdade de expressão, manifestação e de organização popular. O Berro circulou de dezembro de 1978 a dezembro de 1979, e eu fui o seu editor.
1. Introdução
Foucault (1970) nos diz que todo poder implica (resulta) em uma resistência e que toda sociedade seleciona seu discurso, descartando, quando não banindo, o que não interessa à fala do poder, ao seu discurso e imaginário. No discurso jornalístico, ou na linguagem jornalística (Lage, 2004), esta seleção passa por processos editoriais tão intensos e rigorosos que muitas das vezes ou quase sempre silenciam vozes, que são expressões de diversidades étnicas, culturais, políticas, sociais, de opinião, de gênero (Gomes, 2006).
Em outras vezes, são edições que buscam harmonizar, “editar”, de certa forma, os discursos dos fatos, múltiplos fatos que, por si próprios, se dizem de muitas e diversas linguagens e situações, não necessariamente harmônicas e harmonizadas. Tantas vezes há em que, pelo contrário, são situações conflitantes entre si, mas que o discurso jornalístico, quase sempre e sob aspectos sutis, busca “editar”, “harmonizar” de tal modo consoante com a voz e os interesses do dono da voz, da mídia (Gomes, 2005). Um discurso determinado, historicamente, enfim, sutilmente subjugado à voz do dono, isto é, de acordo aos seus interesses em jogo. Interesses capitalistas, por excelência, que visam lucros comerciais, industriais e disputam a produção dos sentidos e o poder na sociedade. Discurso cujo poder é detentor de enorme capital político, que busca legitimar a si próprio, enquanto linguagem jornalística e discurso do poder. O poder do discurso jornalístico: deu no jornal, no rádio ou na tevê, é fato. E fim de papo.
O discurso jornalístico é foco recente de estudos e análises de discurso, embora a sua prática remonte, tanto no Brasil quanto em boa parte do mundo, a mais de séculos. O discurso de jornal começou reproduzindo as linguagens dominantes e predominantes de sua época, em suas respectivas sociedades e tempos históricos. Modos de dizer – os ditos e os já ditos – que, no Brasil, como em boa parte dos outros países, ao nascer e prosperar se desenvolveram em períodos romântico-literários, quando os jornais eram escritos com textos rebuscados, de profunda e evidente inspiração poética e prosa literária, da digressão; sem a formatação que mais tarde seria conhecida como linguagem jornalística, identificável em qualquer idioma, “transfronteira” (Lages, 2004). Uma linguagem para informar, cotidianamente, via uma estrutura de texto comum a diferentes línguas, e que alcança grandes audiências, quando não integral credibilidade. Saiu no JB, deu n´O Globo, O Dia publicou, é verdade. Pra desmentir qualquer erro de informação será bem mais difícil do que ter sido notícia. Mesmo que errada, incompleta ou difusa.
Mariani (2001) diz que analisar o discurso jornalístico é importante e necessário porque ele, “enquanto prática social, funciona em várias dimensões temporais, simultaneamente” (p. 33). Ele “capta, transforma e divulga” o presente, como “organiza um futuro”. Diz Mariani:
O discurso jornalístico tanto se comporta como uma prática social produtora de sentidos como também, direta ou indiretamente, veicula as várias vozes constitutivas daquele imaginário. Em suma, o discurso jornalístico (assim como qualquer outra prática discursiva) integra uma sociedade, sua história. Mas ele também é história, ou melhor, ele está entranhado de historicidade. (p. 33)
Mas, além disso, o discurso jornalístico é uma linguagem portadora, em si mesma, da polêmica e sempre interessante discussão sobre a chamada objetividade ou, ainda, não necessariamente a mesma coisa, a dita imparcialidade jornalística, que, de alguma forma se traduz em tal “objetividade” e com ela se confunde. De per si é uma linguagem garantidora da credibilidade da informação. Isto é, uma maneira de dizer que nem sempre diz tudo e que, tantas vezes, diz pelo não dito, pelo que está oculto, ou pela ausência de dizer, mas que transpira e se evidencia produzindo sempre sentidos de “verdades”. Deu no jornal, aconteceu. Já é.
Linguagem “transfronteira”, como a observa Lage (2004), o discurso jornalístico é uma maneira própria de dizer da notícia, da informação jornalística, e como tal praticada em muitos idiomas. Sob esse aspecto, portanto, já nasce formatada (Gomes, 2005). Muda nomes, datas e circunstâncias dos fatos para difundir a notícia, a informação, naquela estrutura de fala e de texto, por sua vez, a que já está habituada sua platéia de leitores, ouvintes, telespectadores. Ou seja, o formato do texto pré-existe aos fatos. Reafirma-se, também aqui, o dito por Benjamin (1994) sobre a morte do narrador.
É através desta linguagem que fatos do presente, conflitos e contradições das sociedades contemporâneas ficarão arquivados em coleções e bibliotecas, como memória potencial, possível de ser retirada de sua insignificância (Davallon, 1999), do esquecimento.
E o que fica como memória dos dias de hoje? De quem se fala nessas memórias? Quais vozes ficarão registradas, quais conflitos, quais silêncios e realidades, contradições...? É de se supor, portanto, que muitas vozes, muitas realidades, muitos clamores poderão e certamente ficam fora da memória do jornal, até porque não se pode dizer sobre tudo. Há limites físicos de espaço e nem tudo tem igual importância. Contudo, no caso do discurso jornalístico há relações de disputas e escolhas que estão presentes no ato mesmo de sua escrita, de tal modo que o que fica para a memória em seus arquivos reproduz e espelha também as relações de força, de poder e de resistência, de disputas ideológicas existentes nas sociedades de seus respectivos tempos históricos.
Até mesmo porque o jornalista que escreve esse discurso – o da linguagem jornalística –é “acima de tudo um contemporâneo”, no dizer de Bakhtin (1970/71, apud Tagé, 2003). Vive na fronteira do acontecer, à espreita do próximo minuto, do que pode transformar nossas vidas (Gomes, 2005). E carrega consigo memórias do dizer, memórias de família, pessoais, toda uma rede de memórias sociais presentes no cotidiano, carregadas de ideologias, de múltiplos sentidos, ambigüidades, contradições.
Por tudo isso, por acontecer no meio social, reproduzindo e interferindo no próprio meio sobre o qual noticia, o discurso jornalístico contém e carrega muitas vozes e conflitos. É dialógico, por natureza, polifônico, pois trata do outro, da diferença e das multidões (religiosas, étnicas, políticas, sociais, esportivas). Mas trata e retrata a diversidade a partir de um ponto de vista, uma linha editorial que desde a pauta vai configurando o texto, do seu nascedouro ao olhar do leitor.
E o que não foi publicado, portanto, não será lembrado, não será memória possível de se reconstituir a partir das pesquisas nas páginas de jornais passados. O que não deu no jornal ficará, tão somente, na memória dos grupos e pessoas, instituições ou etnias, movimentos ou países que participaram do evento, do ato não registrado em notícia de jornal. Isto é, ficará na memória social (Halbwachs, 1990), podendo ou não desaparecer com o tempo, deixar de ser vestígio de memória, caso não fique inscrito em algum meio físico, que se possa consultar mais tarde, se um dia este fato sair de seu esquecimento profundo.
Foi com a intenção também de produzir memória, mesmo que muito mais ocasionalmente do que intencionalmente, que um grupo de militantes políticos, em 1978, decidiu organizar e lançar um jornal que publicasse notícias sobre os movimentos, as lutas e os problemas do dia-a-dia da vida da população mais simples. Isto é, um leque de categorias sociais cujas vidas e dificuldades não eram assunto das pautas dos jornais.
Seja pela repressão política típica de um governo ditatorial, como o que existiu, no Brasil, de 1964 até 1985, quando expirou, formalmente, mas não completamente a influência, o poder e o dirigismo militar na condução do Estado e da sociedade brasileira; seja também por aquele discurso jornalístico ainda tratar as questões populares de formas de linguagem predominantemente sensacionalistas, ou, dito de outra forma, mais irônica e carregada de sentidos e polêmicas: “pobre só é notícia quando protagoniza tragédias ou situações extremamente absurdas e/ou caricatas”. Daí o nome Berro. O jornal dos que não tinham voz e nem vez, e que gritavam para ser ouvidos.
Um jornal “popular e independente”, que em 13 edições publicou notícias sobre acontecimentos ocorridos no meio do povo ou que, acontecendo fora do seu meio, a ele impactava diretamente, como uma política salarial, uma decisão de governo etc. Um tablóide pensado também para ajudar na organização do povo, nos sindicatos, associações de moradores, no meio rural, sendo ele próprio uma forma de organização e influência, com suas reuniões amplas e abertas a que acorriam as novas lideranças dos movimentos sociais que passavam a se constituir, forjando essas lideranças na própria prática cotidiana das suas lutas, que eram tema e assunto de pauta do jornal.
Com isso, a linguagem do Berro, desde o início, buscou ser a mais próxima da maneira de falar e de entender das pessoas que eram o seu público alvo, modificando, contudo, o conteúdo do que abordava. E tinha que ser assim porque, do contrário, um texto de mais difícil compreensão era, inevitavelmente, criticado nas reuniões mensais de pauta, alertando redatores e os “repórteres” informais, que eram os próprios militantes, para o problema. Por isso, para facilitar o entrosamento desta maneira de falar e de produzir discursos, as próprias lideranças desses movimentos sociais eram convidadas a escrever no jornal, trazendo, na contramão do discurso da mídia dominante daquela época, expressões e formas de dizer, de narrar os fatos e de contar os acontecimentos que não eram comuns e nem se encontravam no dia-a-dia do sisudo e repetitivo discurso jornalístico da mídia “oficial”.
2. Contexto histórico
No final dos anos 70, quando surge o Berro, a ditadura militar instaurada pelo Golpe de 64 já não contava mais com uma censura política à imprensa tão ativa, abertamente, como nos anos mais sangrentos do seu poder. Mas por meios terroristas e clandestinos agia com impiedosa perseguição, incendiando sedes e bancas de jornais, perseguindo publicações rebeldes, desde suas redações às gráficas em que eram impressas, e usando instrumentos do financiamento público, como anúncios, balancetes e editais de empresas e órgãos públicos, estatais e governamentais, para sufocar vozes ou para que fossem amplificadas as que eram submissas ao seu poder ou lhe davam apoio.
Muitas publicações lutavam para sobreviver, como foi o caso emblemático do jornal Opinião, no início da segunda metade dos anos 70, e depois dele o jornal Movimento. Editoras e livrarias também sofriam perseguições. Contudo, as publicações se multiplicavam, muitas com menor exposição do que os jornais citados, o que lhes deixava algumas vezes fora da mira e do foco da repressão.
Nos últimos anos da década de 1970, quando pipocavam paralisações nas fábricas da região do ABC paulista, no Rio aconteciam greves na Fiat, nos transportes públicos, e a campanha pela anistia ganhava fôlego e as ruas de várias capitais brasileiras, com apoios e repercussões externas; nesta época, a ditadura ainda detinha poder militar, mas já não tinha tanto respaldo político, em especial, o da classe média, como também de parte da burguesia empreendedora. Estava mais difícil do que em anos anteriores manter o regime de “paz de cemitério”; ou mesmo sustentar, através de efetivos paramilitares, a repressão aberta e radical a toda e qualquer manifestação e/ou organização de atos pelas liberdades políticas e civis e dos mais elementares direitos de expressão, manifestação e de organização.
É neste contexto que surge o Berro. Ativistas políticos, militantes dos movimentos sociais, no estado do Rio de Janeiro, de diferentes origens e profissões, se reuniram para lançar um novo jornal, voltado para a informação, formação e intercâmbio entre leitores interessados na disputa política, em discutir os problemas da atualidade nos bairros ou nos sindicatos, a partir de pontos de vista que privilegiassem os interesses das amplas camadas populares, diferentemente do que fazia a grande imprensa da época, que praticamente desconhecia, ou se fazia desconhecer, os problemas e angústias de amplas camadas da população.
Aqui cabe um parêntesis: (Esta lacuna da chamada grande imprensa, levou a que os movimentos sociais, em especial, associações de moradores, iniciassem uma prática de publicações em tal monta que levou à criação, no início dos 80, pelo Globo, do suplemento dos jornais de bairro. Com marketing promocional e inúmeras vantagens (anúncios mais baratos, pagamento em parcelas etc.), e até pelo seu próprio porte industrial, o grandalhão da imprensa atraiu o comércio dos bairros para anunciar em suas páginas, oferecendo amplas vantagens, até a confecção do anúncio e pagamento a prazo, retirando dos jornais de bairros comunitários a própria fonte de seu financiamento de custeio, que era em boa parte o comércio local, do bairro. Paulatinamente, esses jornais comunitários deixaram de existir. Afinal, qual comerciante não iria preferir anunciar no Globo, a no pequenino e limitado jornal do bairro? Logo depois de consumida, consumada e consolidada a sua supremacia, o Globo mudaria preço dos anúncios e também a própria pauta de seus jornais de bairros).
Mas estávamos, na época da criação do Berro, às vésperas da anistia, que veio em 1979, com imperfeições, mas também como conquista. E estávamos em meio a crescentes e efervescentes atividades políticas, sindicais, de ação e organização de movimentos de bairros e favelas contra a carestia e pelo direito à livre associação, à moradia, e que se expressaram no campo institucional nas eleições de 1978, em que a esquerda conseguiu eleger candidatos à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, através do então MDB. Época das greves no ABCD paulista e da Fiat, do Rio; das lutas estudantis pela reorganização da UNE, dos centros acadêmicos, por melhores condições de ensino, novos currículos, por mais verbas para as universidades públicas; e da greve, em janeiro de 1979, quase totalmente espontânea, dos motoristas e trocadores de ônibus, que paralisou o transporte público pela primeira vez na cidade, depois do Golpe de 64.
Esta greve dos rodoviários foi matéria de capa do Berro, no seu segundo número, edição de janeiro. Com duas páginas internas de reportagem, em uma cobertura oposta à feita pelos jornais da grande imprensa da época, praticamente incriminando motoristas e trocadores como “vândalos”, o Berro trouxe a voz dos motoristas e trocadores, com suas troças e ironias, cantigas contra os patrões, como os versos que o jornal publicou na primeira página, dentro da foto, em uma solução que exigiu tamanho esforço da equipe da gráfica onde era rodado o jornal (Anexo 3).
Outras greves viriam e o jornal iria cobri-las com o mesmo espírito de criar espaços no discurso jornalístico para o diferente da diferença que a fala do poder e de sua edição propiciam e permitem. Greves como a dos metalúrgicos de Niterói ou a dos professores da rede estadual, movimentos que iriam dar sustentação ao parto de um novo país que a sociedade transpirava, almejava e perseguia.
É neste contexto que surgiu o BERRO, cujo título, em caixa alta, era seguido na linha de baixo da epígrafe que servia como uma identidade a diferenciá-lo da grande mídia: Jornal popular e independente. Ou seja, um jornal interessado no que acontecia no meio popular, e ao mesmo tempo um jornal independente, isto é, fora dos parâmetros que esquadrinhavam a imprensa de então, deixando-a, quase sempre, distante, distanciada dos olhares da sociedade, que estão fora do estreito círculo do público alvo desta grande imprensa, a chamada classe média, os segmentos que a ela almejam, além dos parceiros do poder e dos formadores de opinião, os críticos e/ou os jornalistas.
O objetivo do Berro era, portanto, totalmente político e esses militantes, em grande maioria, vinculados ao Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP[1]), organização política de esquerda, clandestina, que foi “desbaratada” pela polícia política da ditadura no início de 1977, como noticiaram os jornais da época. Mas que se reergueu e manteve influência política por longos anos, dissolvendo-se em outras organizações, desde o próprio Partido dos Trabalhadores aos grupos que ainda se mantêm organizados, com estrutura própria, e que atuam como tendências em partidos como PT, PSOL, PSB, PDT, e até mesmo o PMDB, que abriga o antigo MR-8.
Durante 11 edições mensais, mais duas extras, entre dezembro de 1978 e dezembro de 1979, com relativo sucesso junto ao seu público alvo – trabalhadores de fábricas e de
empresas, servidores públicos, moradores de comunidades pobres e de bairros com movimentos organizados (associações, grupos etc.), mais a militância organizada do
movimento social – o Berro circulou cumprindo seu objetivo fim. Informar e, desta forma, ajudar na organização das lutas populares de resistência à ditadura militar, e ser, desta forma, ao mesmo tempo, uma expressão e um instrumento da resistência no campo do jornalismo, da política e do discurso, impregnado que era, este, pelas censuras, autocensuras e opressões que transcorriam e transpiravam desde a linha editorial à pauta e à própria escrita de seus repórteres, redatores e editores.
A ditadura militar brasileira já dava sinais de proximidade do seu esgotamento, fim do ciclo de sua forma e tempo de poder. Surda aos clamores que vinham das ruas, dos sindicatos, universidades, fábricas, escritórios, serviços públicos – cega diante do abismo cada vez maior a separá-la da sociedade brasileira, a ditadura já não tinha mais a mesma eficiência, eficácia, para impedir e calar as vozes vindas de fora de seu círculo de poder. Até mesmo porque isto era cada vez mais impossível, tantas eram as vozes que se multiplicavam.
3. Conteúdos e memórias
O jornal Berro surgiu, em fins de 1979, da fusão de dois pequeninos tablóides que existiam. Um deles era o Berro da Baixada, surgido no início do ano anterior, com a circulação basicamente restrita ao município de Nova Iguaçu, que, àquela época, compreendia uma extensão territorial maior do que a atual. Publicou 16 edições. O primeiro número é de março de 1978, mas há, antes, um número zero não datado. O outro era o jornal Arranco, que teve apenas um número experimental, em setembro de 1979, cujo raio de circulação abrangia a Zona Oeste do Rio, algumas das mais ativas favelas da cidade, onde já havia movimentos associativos, e as fábricas mais importantes, como a Fiat, os estaleiros, inclusive do município de Niterói, mais as metalúrgicas de ambos os lados da Baía de Guanabara e bairros do subúrbio e até mesmo de algumas universidades.
A fusão criou um jornal mais forte e consistente, com maior poder de financiamento, já que os custos de produção, que eram basicamente de impressão e fotografia, eram pagos com a arrecadação feita na venda do jornal e nas doações mensais da militância e das recolhidas junto às bases. O jornal se ampliou para o estado, em especial, o Sul Fluminense, e sua circulação era garantida pela ação da militância dos movimentos sociais que surgiam e se expandiam entre os operários, nos bairros, favelas, entre os estudantes. A organização política à qual pertencia a ampla maioria dos participantes do Berro, o já citado MEP, estava com a sua direção presa nos quartéis militares, de tal modo que a ela nenhuma responsabilidade política, organizativa ou financeira deve ser atribuída.
O jornal foi feito e sustentado por militantes dos movimentos sociais, muitos deles do MEP, pois que estavam enfronhados nas lutas e movimentos sociais e que assumiram pra si a tarefa de dar direção à ação política da extensa militância da organização, construindo um jornal que repercutisse nas lutas e movimentos sociais e que servisse como elo orgânico tanto para a organização, como também para os movimentos sociais, a sociedade civil, as vozes da sociedade que passavam a ressurgir. Ou seja, o jornal foi bancado, em toda a sua existência de 11 números, duas edições extras e, exatos 13 meses, pelos ativistas dos movimentos sociais, que escreviam, apuravam e distribuíam o próprio jornal, e que também recolhiam finanças dentro das fábricas, como nos bairros e junto à militância das organizações populares. Entre eles, muitos estão hoje em postos e funções importantes na sociedade, como Benedita da Silva, César Benjamin, Chico Menezes, entre outros.
Com tais características, o jornal nasce impresso em uma pequena gráfica de Nova Iguaçu, aonde se imprimia em chumbo quente, em processo quase artesanal. A composição dos tipos ainda era manual nos paquês, pequenos retângulos metálicos em que ficavam amarrados os tipos de chumbo [letras e sinais gráficos], extraídos das gavetas do armário da tipografia para a composição, de acordo com as famílias, os tamanhos e as formas [negrito, itálico ou normal]) da composição do texto designados pelo diagramador. Com o correr do tempo o jornal iria superar as velhas máquinas passando, a partir do quarto número, a ser impresso em modernas off set.
O Berro eram oito páginas distribuídas nas coberturas sobre os movimentos de bairros, fábricas, políticas, tais como o lançamento da proposta de criação do Partido dos Trabalhadores, debatida no número 3, março de 1979, tanto através do editorial em defesa da criação de um Partido desta natureza e classe, quanto pela publicação das opiniões de dois sindicalistas da época: João Carlos, o Negão, presidente do Sindiquímica, contrário a um PT, e Osvaldo Pimentel, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, favorável à idéia, pero no mucho. E não foram poucas vezes em que o corajoso dono da gráfica, Everaldo Maciel Monteiro, teve de se ver com sujeitos estranhos (policiais), que chegavam, geralmente à noite, ou, bem cedinho, à porta do estabelecimento, próximo à Estrada do Mendanha, em Nova Iguaçu, para apreender o jornal. Uma única vez, os policiais conseguiram levar quase toda edição, pegando parte no carro que a transportava, um Fusca, e a outra parte na própria gráfica.
Gatos escaldados, nas próximas vezes dissimulamos as saídas da gráfica, alterando rotinas e os dias de rodar o jornal. Certa vez, sabendo que a polícia estava aguardando apenas o carro sair da gráfica, conseguimos burlar a vigilância, esconder os jornais em outro carro e parte em um botequim, carregando, no fusca, apenas dois ou três amarrados de centos da tiragem de 3 mil exemplares que o jornal ostentava, com orgulho, e os entregamos à polícia, fazendo cara de quem tinha perdido tudo. Valeu-nos boas gargalhadas ver, mais tarde, os mesmos tiras nas portas de sindicatos e associações, sem entender que jornal era aquele que estava sendo distribuído. Afinal, desta vez, nós os tínhamos apanhado.
As reuniões de pauta do jornal, inicialmente, em uma casa de três cômodos, com um amplo quintal embaixo de uma frondosa mangueira, com vistas para os morros ainda arborizados do Engenho de Dentro, eram discussões de conjuntura política, enriquecidas pelos informes do que acontecia nos bairros, favelas, fábricas, sindicatos, universidades. Discutíamos também, já que participávamos, em maioria, de uma organização, os rumos das posições políticas mais gerais, como a proposta de criação do PT ou de uma greve geral, pois mesmo com a direção na cadeia nos sentíamos, como já dito, na responsabilidade de prosseguir a luta, dando direção política e propondo caminhos às movimentações políticas e sociais, que se multiplicavam.
As reuniões de pauta do Berro propiciavam tanta sinergia que não era difícil perceber o poder de fogo do jornal, uma modesta “mídia” operária e popular, para disputar, discutir, informar, influir e influenciar os rumos dos acontecimentos. Polarizar com poderosos adversários, os patrões, com nosso pequenino poder de fogo, o de um jornal, que no dizer da canção de Milton Nascimento tanto pode ser um revólver quanto um sorriso.[2]
Com essa proximidade ao movimento social o Berro publicou, em janeiro de 1979, no segundo número do jornal, apesar de todas as limitações técnicas, uma foto ocupando praticamente toda a sua primeira página: a dos rodoviários interceptando ônibus que trafegavam em frente à antiga sede do sindicato da categoria, na Rua Camerino, no Centro, fazendo o popular piquete, há tanto tempo excluído do dia-a-dia e da história das lutas populares do Rio. Esta greve, na época, marcou a cidade e o jornal não só estampou a foto na primeira, como ainda, burlando as limitações da tecnologia disponível, inscreveu na parte mais escura da foto a letra da paródia que os grevistas cantarolavam, nas ruas e assembléias:
– Pra que nossa classe quer dinheiro
Nós já ganhamos demais
Três mil e setecentos cruzeiros
E veja o que a gente faz
Não como, não durmo
Não paramos pra nada
Rompendo as noites pelas madrugadas
Levando o ouro para o patrão
Andar de carro e comprar frescão
Hô, Hô, Hô
O Berro, janeiro de 1979. (coleção do autor)
O jornal aplicava uma linguagem direta, com uma pauta fiel aos interesses que se propunha representar e defender. Já no primeiro número dizia em suas manchetes e chamadas:
Pela Faferj livre
Mutirão Chapéu Mangueira dá o recado
Juízes militares condenam quem defende movimento popular
Em Volta Redonda metalúrgicos denunciam pelego
Baixada: povo reivindica e prefeito se esconde.
Chega de arrocho.
O Berro, janeiro de 1979. (coleção do autor)
Era uma linguagem direta, mesclando manchetes jornalísticas e palavras de ordem (“Pela Faferj livre”). Na época, militantes de uma outra organização política, a Polop[3] (Política Operária, ou, simplesmente P.O.), editavam um jornal que se propunha quinzenal e “concorria” no mesmo “público alvo” do Berro, tendo durado até o início de 1980. Chamava-se Hora Extra, cuja linguagem era mais “carregada” no texto, que eram mais densos, e que tinha como “Diretor Responsável” o já professor Moacyr Cirne, da UFF, pesquisador da história em quadrinho e provavelmente o único, naquela P.O., que detinha diploma de jornalismo para poder assinar como tal. Algumas das manchetes e chamadas do jornal anunciavam:
Comissões de fábricas e delegações sindicais
Xº Congresso Metalúrgico
Parque Proletário quer eleição para associação
Continua a luta pela água na Vila Cruzeiro
Fiat: salários baixos
Jornal Hora Extra, nov./78 e jun./79 (coleção do autor)
Outro exemplo seria o próprio Berro da Baixada, jornal que mesclava conteúdos culturais com a crônica do dia-a-dia, mas onde, vez por outra, aconteciam títulos e chamados do tipo:
Esquadrão continua intranquilizando a Baixada
Berro da Baixada, nº 0, s/d (coleção do autor)
4. Considerações finais
O Berro usava uma linguagem mais direta e mais jornalística. Era importante ser e parecer um jornal. No curto espaço de sua existência, reafirmou com sua história a importância dos jornais nas lutas populares, na possibilidade de se construir um espaço de resistência para as camadas do povo excluídas do poder, através de um meio de informação, uma mídia, mas também de aglutinação. O jornal informa, e também organiza.
O jornal manteve sua pauta baseada na conjuntura política dos movimentos sociais, das fábricas e dos bairros, bem como na das instituições da organização civil da sociedade, que começavam a se organizar, se reproduzir, ganhar solidez e musculatura, constituindo-se enquanto elos orgânicos de uma nova sociedade a nascer/renascer, nascer de novo, agora em outro patamar de consciência e consistência. Eram movimentos e entidades como as oposições sindicais, os sindicatos, associações, centros acadêmicos ou o Comitê Brasileiro pela Anistia, constituído nesta época, e que de certa forma viria a mudar com sua mera existência o discurso da mídia oficial, da grande imprensa, que acabou levada e/ou obrigada a abordar um assunto ainda considerado por muitos, em especial, pelo discurso da ordem, como “tema tabu”: a anistia. A criação do Comitê retirou as máscaras e mostrou os limites que se queria impor à liberdade.
Esse envolvimento com as lutas sociais levou o jornal, em 1979, a duas edições extras. Em março, tratou das greves no ABC, com a invasão e ocupação pelo Exército dos sindicatos e das fábricas e ruas do ABCD paulista. As manchetes: “O sindicato é nosso” – “Tirem as mãos dos sindicatos”. A de abril, com a manchete “Metalúrgicos de Niterói estão em greve”, foi escrita, editada e impressa, com fotos, na madrugada do primeiro dia da greve. Um feito inédito para um jornal que levava uma semana ou mais na produção final de texto, edição e impressão. Mas era, também, afinal, a primeira greve dos metalúrgicos, em Niterói, após o golpe militar. A voz operária subia o tom.
Em junho, o jornal publicou a cobertura do Congresso dos Trabalhadores Rurais do Rio de Janeiro, e a vitória da oposição metalúrgica de Volta Redonda, na campanha salarial da Companhia Siderúrgica Nacional. Na edição de julho, abriu as páginas centrais para a opinião dos moradores da Maré sobre o Projeto Rio, que previa nova urbanização da área, com a remoção das favelas. Em agosto, o destaque foi a nova greve da Fiat e a luta pela anistia. O jornal entrevistou um preso político, Hélio da Silva, ferroviário, que estava na Ilha Grande, e que era acusado pelo governo de ser terrorista.
Em setembro, o jornal é o primeiro praticamente a divulgar a morte de um peão, um trabalhador de obra, em Volta Redonda, contratado de uma empreiteira que prestava serviço à CSN (uma “gata”). O trabalhador morreu espancado pelos seguranças do alojamento dos operários da construção civil, que prestavam serviços à CSN, e seu corpo sumiu. O crime levantou a cidade em protesto, com apoio da diocese e das igrejas católicas locais, com os demais trabalhadores da construção civil fazendo a sua primeira greve, em Volta Redonda (então, área de Segurança Nacional), após tantos anos de opressão.
Em outubro, o jornal retoma a discussão política de um partido de trabalhadores e divulga as diversas iniciativas e atos políticos de lançamento e criação do PT. Em sua última edição, em dezembro de 1979, o jornal anuncia aos leitores que deixará de circular em janeiro, mas que voltará “com as forças renovadas para continuar a desenvolver nosso jornal e construir uma imprensa que realmente esteja ao lado do povo”.
A promessa não se cumpriria. O jornal terminou “enquadrado” nas “novas diretrizes políticas” do MEP. Em vez de prosseguir com uma experiência desenvolvida desde baixo, das fábricas, dos bairros, morros, dos movimentos, a direção política da organização decide criar um novo jornal, o Companheiro, de caráter nacional, para o qual seria arrastada, a contragosto, boa parte da militância do Rio de Janeiro que ajudou a construir o Berro e que logo depois se desligaria do MEP.
E assim o jornal acabou. Virou esta memória que narrei aqui.
4. Referências bibliográficas
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Benjamin, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Berro. Jornal popular e independente. Coleção do autor. Rio de Janeiro: Editora Equipe, dez./1978 a dez. 1979.
Berro da Baixada. Coleção do autor. Nova Iguaçu: Editora Equipe, 1978.
Davallon, J. A imagem: uma arte de memória? In: Achard, P., Davallon, J., Durand, J.L., Pêcheux, M. e Orlandi, E. Papel da memória. Tradução e introdução: José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999.
Foucault, M. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
Gomes, Nilo S. O texto jornalístico: tecnologia de discurso ou ocultação de sentidos? In: Morpheus. Revista Eletrônica em Ciências Humanas da Unirio, Ano 03, número 07, 2005. Disponível em www.unirio.br/morpheusonline.
_____________ Em busca da notícia: Memórias do Jornal do Brasil, 1901. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Centro de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio, 2006.
Halbwachs, M. A memória coletiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda, 1990.
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Lage, Nilson. Linguagem jornalística. São Paulo: Editora Ática, 2004.
Mariani, Bethânia. Os primórdios da imprensa no Brasil (Ou: de como o discurso jornalístico constrói memória). In: Orlandi, E.P. (org.). Discurso fundador. A formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas, SP: Pontes Editores, 2001.
Tagé, Terezinha. Cultura e memória social no discurso jornalístico. Disponível em nov./2003 in: www.entretextos.jor.br/forum/texto002.html.
[1] Ver Brasil Nunca Mais, p. 102. Petrópolis, RJ: Arquidiocese de S. Paulo, Editora Vozes, 1985.
[2] Durango Kid, composição de Fernando Brant, letra, e Milton Nascimento, música: “este jornal é meu revólver, este jornal é meu sorriso”
[3] Ver Brasil Nunca mais, p. 102. Petrópolis, RJ: Arquidiocese de S. Paulo, Editora Vozes, 1985.